domingo, 14 de maio de 2023

"Não põe a mãe no meio!"

Às vezes me pego a pensar no meu tempo de criança. Não havia essa tecnologia de hoje – crescemos sem celulares, sem computadores, sem joguinhos eletrônicos na televisão. Sei que a criançada de hoje nem imagina que fazíamos os nossos próprios brinquedos às vezes e na maioria dos casos um lote de terra e uma bola resolviam nosso problema de diversão (quem é dos anos 50/60 lembra disso). Não havia nenhum treinamento, nenhuma tática: jogávamos conforme víamos os times na televisão. Sem uniformes, decidíamos entre os com camisa e os sem camisa. Chuteiras? Nem pensar... alguns jogavam de sandálias mesmo. As regras inventávamos na hora e não havia juíz. Uma coisa era certa: aonde a bola ia, lá iam todos os jogadores dos dois times, embolados, tropeçando uns nos outros. E quem nunca tinha levado um tombaço e deixado bons pedaços de pele do joelho na terra? Qual de nós, ao tentar marcar o pênalti, acertou uma pedra e não a bola e voltou mancando pra casa? Tempos bons... Claro que saíam brigas nas jogadas. Na falta de VAR, deliberávamos nós próprios alí, no grito, no empurrão, com palavreado alterado, cada um defendendo seu ponto de vista. Sobravam sopapos e a briga generalizada.

Mas havia um código de honra entre todos – as desavenças do jogo e das brincadeiras juntos ficavam entre nós. Se alguém inventasse de ofender a mãe de alguém, o tempo fechava. Todos esqueciam as diferenças pessoais e partiam pra cima do ofensor. Ninguém admitia que absolutamente nada fosse dito sobre a mãe de alguém; podíamos nos xingar de um monte de palavrões, mas se envolvesse mãe... ah!... esse garoto estava frito. E depois de muito bate-boca ele era posto no ostracismo, não podia participar de nenhuma brincadeira por um período.

Fiz esse relato todo para dizer que a figura da mãe sempre foi algo sagrado para cada um de nós. Desde garotos sabíamos que deveríamos defender nossas mães de qualquer ameaça. Tínhamos consciência de que nossa mãe zelava por nosso bem estar. Era nossa mãe que ficava do nosso lado, nos defendia de situações adversas. Era ela que tratava do joelho ralado no tombo e do dedo arrebentado na cobrança do pênalti. Ela também nos acalmava quando chegávamos alterados pelas contrariedades da infância ou por causa do menino que tinha rasgado a figurinha do álbum.

Mãe não sinaliza somente a mulher que teve filho/filhos; mãe é a síntese do amor abnegado, incondicional. Ela é a figura na qual nos espelhamos desde a mais tenra infância para sermos o que somos hoje. Pensa que é por acaso que todos temos um “M” na palma da mão? É M de Mãe – bom, né? Isso quer dizer que, mesmo distantes dela, a cada manhã quando lavamos o rosto, esfregamos docemente esse M em nossa face, num carinho que não acaba nunca... E existe beijo melhor do que o dela?
Feliz Dia das Mães!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

 A NOITE EM QUE PELÉ IMPEDIU QUE EU APANHASSE

Paris, julho de 1997. Eu havia andado muito pela cidade naquele dia. As coisas todas eram corridas, vida de turista não é fácil! Horário para transporte, para ingresso em museu, outro museu, visita a Notre Dame, mais uma galeria, outra loja... ufa! Já era noite quando voltava para o hotel. Fome, claro. Ainda dentro da estação do Metrô, tinha uma banca de frutas. Parei, cumprimentei os dois vendedores com o olhar e fiquei observando o que levaria. As frutas eram lindas, pareciam suculentas. Eu me decidi por maçãs e ato reflexo, peguei uma delas para observar mais de perto, como é nosso costume no Brasil. Não demorou meio segundo para que os dois começassem a esbravejar comigo em bom e puro francês – idioma no qual eu não digo nem 'oi'. Os homens ficaram enfurecidos comigo. Lembrei do nosso escritor José de Alencar porque eles eram 'negros como as asas da graúna'. Quem já foi à França sabe do que estou dizendo: os negros residentes na França fazem com que o Neguinho da Beija-Flor pareça mais um moreninho claro... Eu pensei que eles fossem me bater alí mesmo, tinham uma raiva inexplicável nos olhos e não paravam de gritar comigo. Era evidente que não haviam gostado que eu tivesse colocado a mão numa maçã. Comecei a balbuciar num Inglês débil, tentando me justificar: “Sorry... I'm not from around here. I'm from Brazil... there we have other customs... Brazil, you know? Samba... Carnival... Pelé...”. Foi aí que o milagre aconteceu: quando eles ouviram 'Pelé' a fisionomia de ambos se transformou. A raiva foi embora e o rosto franzido deu lugar a sorrisos largos e um olhar doce. Permitiram que eu fizesse algo que (fiquei sabendo depois) não é comum por lá: escolher as frutas que eu queria, eu mesmo pegando-as nas mãos. Fui embora feliz com as minhas maçãs por vários motivos: daria um jeito imediato na fome, não havia apanhado deles e o mais importante... tive a confirmação inequívoca de que Pelé não era um jogador de futebol brasileiro. Pelé era uma instituição internacional. Ele não pertencia ao Brasil mas era do mundo. Todos o conheciam, admiravam, respeitavam. Sempre contei essa passagem aos amigos e agora, com profunda tristeza pelo passamento do Edson, resolvi escrever para que mais pessoas saibam. Pois é, Edson... você se foi para um merecido descanso mas o Pelé, esse vai ficar por aqui porque é eterno, é imortal, é uma constelação inteira no firmamento.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

O Coruja


Os olhos sempre atentos a tudo prestavam atenção a cada detalhe.

- Esse menino não perde nada, hein? Presta uma atenção...

- Sim, está sempre ligado em tudo... é um bebê ainda e parece que até entende o que os adultos conversam!

- Esse olhão arregalado... parece uma corujinha!

Pronto, o apelido pegou na hora! Coruja!

O menino cresceu, ficou forte e bonito, a alegria de todos os parentes. Conservava sempre aquele olhar quieto mas profundo, uma curiosidade imensa sobre o que o cercava.

Perguntas não faltavam: o Coruja queria saber sobre tudo, tudo!

Não foi um aluno muito brilhante na escola. Ficava aborrecido por ter que ficar sentado na sala de aula ouvindo a professora. Seu olhar pulava a janela ampla e ficava observando a copa das árvores, as nuvens, a passarada voando...

Ele sempre se considerou mais esperto do que os colegas, achava a escola uma perda de tempo. Mas, criança, tinha que obedecer aos pais.

O Coruja foi crescendo, chegou à adolescência. Teve que se alistar para servir o Exército.

Foi ao Quartel, preencheu as fichas, entregou os documentos. Aguardou em casa até que chegou o aviso: iria servir numa unidade do Exército numa outra cidade, um pouco distante de sua casa.

Encarou aquilo como uma atividade nova, pessoas todas desconhecidas, disciplina, hierarquia, ordem. No início ficou maravilhado com tudo aquilo, o toque da alvorada, a farda, os coturnos que mantinha sempre engraxados, a bandeira nacional hasteada, os treinamentos – tudo era novidade.

Mas o Coruja foi ficando entediado com sua nova vida: nada tinha muita emoção, era sempre a mesma coisa. Para ele – que sabia tudo – aquele marasmo era desesperador.

Ficou sabendo, através dos outros recrutas, que havia uma casa de diversões próxima do Quartel. Segundo os colegas, alí tinha garotas, uma mais bonita do que a outra e dispostas a proporcionar uma noite bem interessante...

Coruja ficou aguçado para conhecer o tal lugar. Bolou um plano.

- Capitão, eu queria pedir ao senhor se posso me ausentar do Quartel neste final de semana.

- O que houve, Soldado?

- Eu queria visitar minha mãe. Ela está muito doente.

- É mesmo? O que aconteceu com ela?

- Tem idade, né Capitão? O senhor sabe, a gente fica preocupado...

- Sim, eu entendo. Pode ir, Soldado. Você fica dispensado no próximo final de semana.

E lá foi o Coruja para o bordel. Divertiu-se o quanto pôde.

Quando voltou ao Quartel, ficava olhando o Capitão à distância e pensando no que tinha feito. Foi fácil demais...

Resolveu repetir mais uma vez:

- Capitão, o senhor poderia me liberar para eu ir visitar minha mãe?

- Ela piorou, Soldado?

- Pois é... eu estou aqui mas minha cabeça fica pensando, imaginando coisas... o senhor sabe!

- Claro, vá lá amparar sua mãe.

De novo, o bordel. No meio da bebida e da mulherada, ficava pensando quanto o Capitão era bobo...

Na outra semana, voltou ao Capitão:

- Capitão... eu queria...

- Já sei, Soldado! Quer visitar sua mãe.

- Sim... é... sim. O senhor me desculpe mas...

- Imagine, Soldado. No seu lugar eu também ficaria preocupado.

O Coruja se aprontou para sair na noitinha daquela sexta-feira mas o que ele não percebeu é que o Capitão já andava desconfiado daquela estória e resolveu seguí-lo à distância. Usou um carro com os faróis apagados cuidando para não perder o Soldado Coruja do seu campo de visão. Observou quando Coruja entrou num ônibus e desceu a poucos quilômetros dalí. Devagarinho o seguiu e viu quando entrou no bordel, que estava em festa, luzes coloridas, com música tocando alto.

Na segunda-feira logo cedo, o Capitão mandou chamar o Soldado Coruja na sua sala.

- Bom dia, Capitão!

- Bom dia, Soldado! Eu queria perguntar uma coisa a você... sua mãe é prostituta?

- Que é isso, Capitão? Não.. imagine!!!

- Então é a minha mãe que é prostituta?

- Eu...eu...eu... não, Capitão!!!

- Soldado, ou é a sua mãe ou é a minha: uma das duas é prostituta, sim.

Coruja sentiu naquele embate uma derrota iminente. As pernas bambearam, a boca ficou seca de repente. Algo dera errado.

- Soldado, um de nós aqui está mentindo. Se não é você, então o mentiroso sou eu.

- Mas, Capitão... eu não sei do que o senhor está falando...

- Sabe sim, Soldado! Eu o segui e vi quando entrou naquele bordel.

A manobra custou um mês de prisão ao Soldado Coruja. Prisão para um Soldado é a pior das desonras. O Coruja se sentia derrotado – logo ele, o espertalhão de nascença, o menino que sabia de tudo, que não precisava das professoras, ficou alí naquela cela úmida contando os minutos durante um mês. E como se explicaria à família?

O restante do período engajado foi na faxina, não participava mais das outras atividades. Alvo das piadinhas dos outros recrutas, abaixava a cabeça e suportava tudo calado: brigar significaria mais cadeia, mais privações.

Quando terminou o prazo do serviço militar obrigatório, participou timidamente da cerimônia oficial e finalmente foi para casa.

Ao chegar, foi recebido pelos pais que, alegres, mostraram a ele o que haviam comprado de presente no mercado do bairro. Num poleiro e com os olhos enormes arregalados, uma pequena coruja com o nome de 'Capitão'...